Fonte: Freepik.com
O médico anestesista está no centro de decisões críticas que determinam segurança, desfecho e qualidade do procedimento cirúrgico.
A anestesia não é apenas um ato técnico; é um ato médico complexo, que exige avaliação clínica, planejamento, monitorização contínua e respostas rápidas a intercorrências. Por isso, quando ocorre um evento adverso (como broncoaspiração, instabilidade hemodinâmica, reação medicamentosa grave ou parada cardiorrespiratória) não é incomum que surjam alegações de erro médico, pedidos de indenização por danos e até investigação penal por lesão corporal ou homicídio culposo.
O objetivo deste artigo é orientar como o anestesista pode se prevenir e se defender, quais documentos são indispensáveis, como funciona a análise do direito penal e do direito civil e o que fazer, na prática, diante de um caso concreto.
Quando o erro anestesista configura crime segundo o direito penal?
No Direito Penal, o ponto de partida é claro: resultado ruim, por si só, não é crime.
Para que um erro anestesista seja penalmente relevante, a acusação precisa demonstrar três pilares: violação do dever objetivo de cuidado (isto é, conduta médica abaixo dos padrões), nexo causal entre essa conduta e o dano, e culpa na forma de negligência, imprudência ou imperícia.
Complicações inerentes à anestesia (como laringoespasmo imprevisível, anafilaxia sem fatores de risco identificáveis, arritmia fulminante em paciente estável ou broncoaspiração em contexto fora do controle do time) não geram homicídio culposo ou lesão corporal culposa quando a atuação esteve alinhada às boas práticas da especialidade médica de anestesiologia.
O Ministério Público costuma olhar, primeiro, para a identificação e a estratificação de risco pré-anestésico: o anestesista conferiu jejum? mapeou alergias e interações medicamentosas? avaliou comorbidades cardiorrespiratórias? revisou exames? classificou ASA? planejou via aérea difícil com estratégia A/B/C?
Em seguida, a lente vai para o intraoperatório: técnica escolhida (geral, regional, sedação), doses e sequências de indução, ventilação, capnografia, oximetria, ECG, pressão invasiva ou não, temperatura, resposta a alarmes e a eventos críticos. Por fim, examinam-se os critérios e registros de alta da recuperação anestésica. Se tudo isso foi feito e documentado, a linha de defesa ganha robustez.
Nos julgamentos penais, o que se discute não é “por que o paciente evoluiu mal?”, mas “o que o anestesista fez (ou deixou de fazer) frente aos sinais disponíveis?”.
Quando há erro evidente, por exemplo, sedação profunda em ambiente sem monitorização, bloqueio neuroaxial em paciente anticoagulado sem obedecer intervalos mínimos, ou falha grosseira no manejo de via aérea, a acusação pode sustentar que a conduta rompeu o padrão de segurança do ato médico e foi a causa eficiente do dano. Já quando a literatura reconhece o evento como inevitável ou o prontuário prova diligência, a tendência é afastar o crime.
Importa lembrar: Direito Médico e Direito Civil caminham juntos, mas não se confundem. É possível existir responsabilidade civil (com indenização por danos e eventual indenização por danos morais) sem condenação penal, porque o padrão de prova é diferente.
No direito penal, exige-se certeza quanto à culpa; no cível, discute-se reparação à luz do nexo e do dano, inclusive quando o hospital, clínica ou plano de saúde respondem por falhas estruturais do serviço. Manter essas distinções claras ajuda a calibrar expectativas e estratégias.
Outro ponto prático: a cadeia de decisões é compartilhada com equipe médica e médico cirurgião. Em procedimentos longos, o cirurgião chefe define tempos, conversões e prioridades cirúrgicas; o anestesista lidera a vigilância hemodinâmica e ventilatória.
Registros objetivos sobre quem comunicou o quê, quando e como são fundamentais para demonstrar que o anestesista atuou com prudência, dentro do código de ética médica e em coerência com a realidade do centro cirúrgico.
Conduta médica sob investigação: o que avaliar para construir uma boa defesa
Uma defesa sólida começa pela reconstrução cronológica do caso. Em situações de recurso ou resposta à acusação, a narrativa técnica precisa mostrar, passo a passo, como o profissional avaliou, decidiu e interveio.
Isso se faz com prontuário completo, relatórios de anestesia, checagem de equipamentos, curva de sinais vitais, tempos, doses, nomes de fármacos, evolução clínica, anotações da equipe de enfermagem e da equipe médica. O que não está escrito, na prática forense, “não existiu”. Por isso, a qualidade documental é o coração da defesa.
Sob a ótica pericial, três perguntas orientam o entendimento técnico: havia risco previsível? o anestesista reconheceu sinais de alarme a tempo? as respostas terapêuticas foram tecnicamente adequadas? Se a turma julgadora e o perito concluem que sim, o caminho para o arquivamento ou absolvição fica mais curto.
Se, ao contrário, identificam hiatos graves (p. ex., ausência de capnografia em ventilação controlada, alarmes desligados, não registro de doses em parada cardiorrespiratória, ausência de plano para via aérea difícil), cresce a chance de se sustentar culpa penal.
A relação com o cirurgião e o cirurgião chefe também precisa aparecer com nitidez. Houve comunicação efetiva sobre hipotensão refratária? o sangramento estava controlado? decisões de manter ou suspender a cirurgia foram compartilhadas? Em centros com múltiplas salas, atrasos na chegada de suporte e insumos podem caracterizar falhas de serviço e não, necessariamente, do profissional autônomo.
É por isso que, além de descrever a técnica, o prontuário deve refletir a logística real do centro cirúrgico: disponibilidade de ventiladores, videolaringoscópios, vasopressores, reversores, ultrassom, carrinho de PCR, aquecimento ativo. O poder judiciário raramente ignora limitações objetivas quando elas estão bem registradas.
Por fim, alinhe a defesa às normas éticas. O conselho federal de medicina e os regionais avaliam condutas à luz do código de ética médica. Embora processos éticos, cíveis e penais corram em vias distintas, coerência entre versões técnicas é essencial.
Não prometa o impossível; explique por que a decisão tomada era a melhor naquele estado clínico, cite diretrizes e deixe clara a profissão de fé na segurança do paciente. A forma é conteúdo: um relato cronológico, objetivo e fundamentado em ciência vale mais do que páginas de comentários genéricos.
Documentos e provas essenciais para o anestesista
Para estruturar a defesa, concentre-se em quatro frentes.
Prontuário anestésico completo (a base da defesa)
- O que incluir: avaliação prévia, classificação ASA, confirmação de jejum, histórico de alergias, medicações de uso, checagem detalhada de via aérea, planejamento A/B/C, técnica adotada (geral, regional, sedação), fármacos e doses, monitorização contínua com alarmes ativos, intercorrências e condutas realizadas.
- Por que importa: o prontuário demonstra a racionalidade da conduta médica e comprova aderência a boas práticas; sem ele, a narrativa técnica fica frágil perante o julgador.
Registros do intraoperatório e da recuperação (prova objetiva de qualidade assistencial)
- O que incluir: curvas e prints de monitores (capnografia, oximetria, ECG, pressão, temperatura), tempos de eventos críticos, resposta hemodinâmica, analgesia administrada e critérios de alta da SRPA.
- Por que importa: evidenciam vigilância contínua, tempo-resposta adequado e segurança na transição para a recuperação, reduzindo alegações de omissão ou atraso.
Evidência de aderência a protocolos (padrão técnico verificável)
- O que incluir: documentação de time-out, checklists institucionais, comunicação SBAR, e aplicação de protocolos de reação anafilática e PCR (parada cardiorrespiratória).
- Por que importa: prova que a equipe seguiu rotinas reconhecidas, reforçando previsibilidade, segurança do paciente e redução de risco — elementos que costumam afastar culpa penal.
Perícia médica e parecer técnico da especialidade (tradução da ciência ao direito)
- O que incluir: laudo de perícia médica e parecer técnico de especialista em anestesiologia, com análise do caso concreto, literatura de apoio e justificativa das escolhas clínicas.
- Por que importa: esses documentos traduzem a ciência do dia a dia em linguagem compreensível ao julgador, comprovando a racionalidade do ato médico e a coerência entre o contexto clínico e as decisões tomadas.
Estratégias jurídicas e preventivas para o médico anestesista acusado de erro médico
O melhor resultado jurídico nasce de uma prática clínica segura. Prevenção não é só checklist; é cultura. No pré-operatório, examine sem pressa: estratifique risco, solicite informações faltantes, alinhe expectativas, explique complicações, coletando consentimento informado claro.
Em sedações fora do bloco, avalie se o meio é adequado: há oxigênio, aspiração, monitorização, reversores, carrinho de PCR? Fora disso, o risco jurídico sobe exponencialmente, porque o ambiente não suporta falhas raras, porém catastróficas.
No intraoperatório, a palavra é vigilância. Capnografia salva vidas e processos; alarmes devem permanecer ativados; doses precisam estar no papel; trocas de equipe exigem passagem formal. Se a via aérea surpreender, registre as tentativas, o dispositivo supraglótico utilizado, o tempo de dessaturação, os vasopressores, o retorno de pressão.
Se houver parada cardiorrespiratória, descreva cronologicamente compressões, drogas, ritmos, choques, tempos, retorno de circulação e decisões subsequentes. Essa atenção à prestação documental é, muitas vezes, a diferença entre um pedido de condenação e um arquivamento.
No pós-operatório, não antecipe alta da SRPA por conveniência. Critérios objetivos (estabilidade hemodinâmica, saturação, nível de consciência, controle de dor e de náuseas) devem orientar a liberação. Eventos tardios costumam gerar comentários de familiares e, depois, ações. Um telefonema de follow-up documentado pode reduzir ruídos e demonstrar zelo.
Do ponto de vista jurídico, três movimentos importam ao primeiro sinal de acusação. Preserve tudo: relatórios, prints, logs do monitor, escalas, checagens de equipamentos, cadastros de profissionais presentes. Evite “corrigir” prontuários retrospectivamente: isso fragiliza a defesa.
Constitua equipe experiente em direito médico, direito civil e direito penal para unificar linguagem técnica e processual. E nomeie assistente técnico da anestesia para dialogar com a perícia médica oficial.
Em muitas situações, o parecer bem feito explica que a causa do desfecho foi comorbidade grave, reação imprevisível, falha estrutural ou decisão cirúrgica que impôs estresse hemodinâmico extremo, hipóteses que rompem o nexo causal penal.
No campo cível, prepare-se para discutir responsabilidade civil, indenização por danos e indenização por danos morais. A depender do arranjo contratual, o hospital ou a operadora podem integrar o polo passivo. O profissional autônomo precisa cuidar de contratos, seguros e guarda de documentos. Transparência com o paciente e familiares, dentro dos limites do sigilo e da boa-fé, diminui o litígio e demonstra respeito — valor caro ao código de ética médica.
Em sede penal, a acusação pode tipificar lesão corporal ou homicídio culposo. Não antecipe versões públicas. Quaisquer “explicações” improvisadas em redes sociais ou à imprensa podem ser exploradas no processo. Deixe que a defesa técnica conduza o diálogo institucional.
Em audiências, responda com clareza e sobriedade, conectando cada decisão a diretrizes reconhecidas. Citações a art e artigo legais são papel do advogado; ao médico anestesista cabe demonstrar que sua conduta foi científica e proporcional ao contexto.
No relacionamento com médico cirurgião, cirurgião chefe e lideranças do centro cirúrgico, adote comunicação estruturada. O “time out” inicial e os “briefings” de risco têm valor clínico e probatório. Quando divergências técnicas surgirem, registre a sua vista: “alertado o cirurgião sobre hipotensão refratária; solicitadas manobras hemostáticas; discutida a possibilidade de conversão; mantidos vasopressores; aguardada resposta por X minutos”. Isso não é “defensivismo”; é medicina transparente.
Finalmente, acompanhe desfechos institucionais. Em eventos sentinela, participe de comitês de saúde e qualidade; traga conteúdo técnico, não justificativas. Onde houver tema de educação continuada, proponha simulações (via aérea, anafilaxia, PCR) e revisão de estoques críticos.
Profissionais que cultivam segurança do paciente diminuem a chance de erro e, quando ele ocorre, demonstram ao julgador um histórico de exercício responsável da profissão.
Acusar um anestesista de erro médico exige, da acusação, prova consistente de violação técnica e de nexo causal com o dano.
A melhor defesa combina prontuário robusto, aderência a protocolos, atuação baseada em evidências e estratégia jurídica especializada. Se você enfrenta investigação, inquérito, julgamento ou ação de responsabilidade civil, organize seus documentos, evite declarações improvisadas e procure suporte profissional qualificado.
Diante de qualquer acusação de erro médico ou dúvida sobre responsabilidade civil e direito penal, você não precisa caminhar sozinho. A Garrastazu conta com advogados especialistas em todas as áreas prontos para agir rápido, analisar o prontuário, orientar sua estratégia, acompanhar a perícia médica e defender sua carreira com técnica, ética e resultados. Fale conosco!


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