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A fronteira entre um resultado indesejado e um crime médico é, muitas vezes, mais estreita do que parece, e compreender essa diferença é essencial para qualquer médico que deseja atuar com segurança.
Em um cenário de crescente judicialização da saúde, conhecer exatamente quando a conduta médica pode ser considerada criminosa é o primeiro passo para evitar riscos, fortalecer a própria atuação profissional e se preparar para eventuais processos penais.
Este guia prático reúne critérios objetivos, decisões recentes da Justiça e orientações técnicas indispensáveis para proteger sua carreira.
Critérios da conduta médica para configuração do crime
Nem todo erro ou falha no serviço médico é crime.
O juiz de direito só pode reconhecer a responsabilidade criminal de um profissional se alguns requisitos estiverem presentes ao mesmo tempo.
Culpa, imprudência, negligência ou imperícia na prática médica
No Código Penal brasileiro, a maior parte dos crimes ligados ao erro médico é culposa:
- homicídio culposo (art. 121, §3º),
- lesão corporal culposa (art. 129, §6º),
- e omissão de socorro (art. 135), entre outros.
Em todos, o ponto central é a culpa na conduta médica, que pode se manifestar de três tipos:
- Negligência – quando o médico deixa de fazer o que deveria. Exemplo: não avaliar exames importantes, não acompanhar uma parada cardiorrespiratória em pronto socorro, abandonar plantão em unidades de saúde.
- Imprudência – quando age com excesso, de forma precipitada. Exemplo: realizar um ato médico de alto risco sem estrutura mínima, ou sem equipe adequada.
- Imperícia – quando falta habilidade ou conhecimento técnico para aquele procedimento. Exemplo clássico: o dr. atua fora de sua área de treinamento, contrariando as normas do Conselho Federal de Medicina.
Apenas quando se demonstra que a conduta violou o dever objetivo de cuidado, isto é, os princípios técnicos, o código de ética médica, o capítulo V (que trata da relação médico paciente) e demais regras da ética médica, é que se abre espaço para a responsabilidade penal médica.
Nexo de causalidade, dano e tipificação no direito penal
Outro ponto crucial é o nexo causal: é preciso provar que o ato médico (ou a omissão) foi causa relevante do resultado (morte, lesão corporal, agravamento do quadro).
Em termos simples: não basta que o paciente tenha sofrido danos; é necessário demonstrar que, sem aquela conduta, o resultado provavelmente não teria ocorrido.
No contexto da área médica, isso significa que:
- Se o resultado decorre exclusivamente da gravidade da doença, sem relação com o que o médico fez ou deixou de fazer, não há responsabilidade penal.
- Se há várias causas concorrentes (ex.: paciente chega ao pronto socorro em condições muito críticas, demora de transporte, falta de leito), é necessário avaliar se a conduta do médico foi determinante – e essa pesquisa é feita com forte apoio da prova pericial e do assistente técnico.
- Se o médico seguiu as normas, protocolos e boas práticas, o fato de haver complicação ou mesmo morte não implica automaticamente crime.
O nexo causal é, portanto, a “ponte” entre o fato e a responsabilização. Sem ele, o processo penal não se sustenta.
Dano e tipicidade: quando o resultado é relevante para o direito penal
Além da culpa e do nexo causal, é preciso que o resultado seja penalmente relevante e esteja descrito em lei (tipicidade).
O direito penal não se ocupa de qualquer prejuízo, mas de danos à vida, à integridade física, à liberdade, entre outros bens jurídicos.
Na prática:
- Pequenos desconfortos, efeitos colaterais comuns e reações previsíveis muitas vezes são considerados “risco inerente ao exercício da profissão”, especialmente quando informados ao paciente;
- Já a ocorrência de lesão corporal grave, sequelas permanentes ou morte colocam o caso no radar da responsabilidade penal médica.
É aqui que se distingue o campo da responsabilidade civil, voltada à indenização por danos, do campo da responsabilidade criminal, voltado à aplicação de pena.
Como o Conselho Federal de Medicina e o sistema de justiça avaliam a conduta médica criminosa
A mesma conduta médica pode ser analisada em três esferas diferentes:
- Ética – pelos conselhos de medicina (CFM e CRMs);
- Civil – pela responsabilidade civil médica em ações de indenização;
- Penal – pela responsabilidade penal do médico, julgada por um juiz de direito no âmbito do processo penal.
A atuação disciplinar do CFM versus a ação penal
O Conselho Federal de Medicina e os Conselhos Regionais são autarquias de direito público responsáveis por fiscalizar o exercício da profissão médica.
O Código de Ética (ou Código de Ética Médica) é editado pelo CFM e traz normas de atuação profissional – inclusive no capítulo V, que reúne regras sobre relação médico paciente, sigilo, respeito à pessoa humana, emissão de atestado médico e qualidade do serviço médico.
Quando há notícia de erro médico, o Conselho pode instaurar:
- Sindicância – fase inicial em que se apura se houve indícios de infração ética;
- Processo ético-profissional – se houver elementos, o médico é formalmente acusado e poderá ser responsabilizado com sanções que vão de advertência à cassação do registro.
É importante destacar:
- O Conselho não condena ninguém por crime, mas suas decisões podem influenciar a percepção do Poder Judiciário e do consumidor;
- Em muitos casos, o processo ético corre em paralelo com ações de responsabilidade civil e com o processo penal.
Para o médico, isso significa que:
- Agir em consonância com o Código de Ética Médica e com os pareceres do Conselho Federal de Medicina reduz a chance de o ato médico ser visto como ilícito;
- Documentar a relação médico paciente, explicar riscos, registrar em prontuário e emitir atestado médico com clareza é forma direta de proteção.
Decisões recentes dos tribunais e sua repercussão na responsabilização criminal
O Código Penal brasileiro é o ponto de partida, mas são as decisões dos tribunais que mostram como ele é aplicado na prática.
Exemplo 1 – Médico condenado por não acompanhar paciente após cirurgia
Em um conhecido caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi determinada a execução da pena de um médico condenado por homicídio culposo, após uma criança morrer horas depois de uma cirurgia de adenoide.
A acusação apontava que o profissional não prestou a assistência devida após o procedimento, apesar do quadro de sangramento intenso.
O STJ manteve o entendimento de que:
- havia omissão relevante na conduta do profissional,
- o risco era previsível,
- e o nexo causal entre a omissão de socorro e o resultado (morte) estava comprovado.
Esse exemplo mostra como a falta de acompanhamento no pós-operatório, especialmente em situação de perigo, pode levar à responsabilidade penal do médico.
Exemplo 2 – Falha de informação e dever de cuidado
Em outra notícia do STJ, a Corte analisou o dever de informação do médico cirurgião em procedimento em que a paciente faleceu ainda na fase da anestesia.
O tribunal destacou que, mesmo quando o óbito ocorre antes da cirurgia em si, o cirurgião pode responder, pois escolhe a equipe e indica o procedimento.
Embora o foco desse julgamento tenha sido a responsabilidade civil, a mensagem se estende à responsabilidade penal, pois a conduta médica é avaliada de forma global, incluindo:
- a indicação do procedimento,
- a escolha de equipe,
- a qualidade da informação prestada ao paciente.
Esses dados revelam que:
- os tribunais exigem prova técnica robusta para condenar;
- a responsabilidade penal não é automática;
- mas a tendência é de maior rigor quando há falha grave de cuidado e danos expressivos ao paciente
Estratégias de defesa técnica para médicos acusados de crime em atuação profissional
Saber quando a conduta médica é crime é importante, mas tão essencial quanto isso é saber como se defender. A responsabilidade penal médica não deve ser enfrentada sozinho.
Elementos de defesa: prontuário, peritos, testemunhas e documentação
Em qualquer caso de suspeita de erro médico, o primeiro passo é garantir a integridade das provas:
- Prontuário – descrição detalhada de sinais, diagnósticos, tratamentos, evolução, intercorrências, parada cardiorrespiratória, medicações, orientações;
- Atestado médico – preenchido com exatidão;
- Registros de unidades de saúde e de serviço médico (fichas, protocolos, escalas);
- Comunicações por escrito (incluindo e-mail, quando houver) com o paciente ou familiares.
Do ponto de vista do direito médico, o prontuário é uma das principais armas de defesa. Na falta dele, prevalece a versão do paciente, o que aumenta o risco de responsabilidade civil e penal.
O Código de Ética Médica determina que o médico:
- atue com zelo e segurança,
- não abandone o paciente,
- informe riscos e alternativas,
- respeite a dignidade da pessoa humana.
Cumprir essas normas no dia a dia reduz o número de processos e facilita explicar ao juiz de direito que, embora o resultado tenha sido ruim, a conduta foi correta.
O papel do advogado e do assistente técnico
Em um processo penal por erro médico, contar com um advogado especialista em direito penal e direito médico é fundamental. Esse profissional irá:
- analisar o conteúdo da acusação;
- verificar se há efetivamente crime (tipicidade) ou mero problema de responsabilidade civil;
- organizar a atuação de um assistente técnico para rebater laudos periciais;
- orientar o médico sobre como se portar em depoimentos, audiências e perante o Conselho Federal de Medicina ou CRM.
O assistente técnico, por sua vez, é o médico de confiança da defesa que auxilia na análise do prontuário, avalia se houve falha ou se o caso se enquadra dentro dos riscos do exercício da profissão, e prepara pareceres que demonstram a correção da conduta.
Em paralelo, é comum que o médico responda a ações de responsabilidade civil visando indenização por danos materiais e morais. Mesmo nessas ações, a linha de separação com a esfera penal é tênue: uma mesma narrativa pode desencadear processos em ambas as esferas.
Relação médico-paciente, comunicação e prevenção
A relação médico paciente é, muitas vezes, o ponto de partida dos conflitos. Uma comunicação falha pode transformar uma complicação esperada em sentimento de abandono ou desrespeito.
Boa prática de ética médica inclui:
- explicar com clareza, de forma acessível, o diagnóstico, os tipos de tratamento, os riscos e limites da medicina;
- registrar as orientações importantes, inclusive em atestado médico ou em anotações no prontuário;
- tratar o paciente como pessoa humana, com empatia, sem prometer resultados que não dependem apenas da conduta médica.
Sob o ponto de vista do consumidor, o paciente é titular de direitos e tem expectativa legítima de cuidado, respeito e informação. A jurisprudência do STJ sobre dever de informar em casos de erro médico deixa claro que a falta de informação pode gerar consequências importantes, sobretudo na responsabilidade civil.
Quando a relação é bem construída, o paciente tende a compreender melhor as limitações do tratamento e a distinguir erro de risco, reduzindo o impulso de acionar o profissional em toda e qualquer situação adversa.
O que o médico precisa saber na prática?
Resumindo os principais pontos:
- A responsabilidade penal do médico depende, em regra, de: a) conduta médica culposa (negligência, imprudência ou imperícia); b) nexo causal entre essa conduta e o resultado (morte, lesão corporal, agravamento significativo); c) tipificação no código penal (como homicídio culposo, lesão corporal culposa ou omissão de socorro).
- A simples existência de erro médico, de danos ou de um mau resultado não significa, automaticamente, crime. É indispensável análise cuidadosa do fato, do prontuário, das condições da unidade de saúde e da participação de cada profissional envolvido.
- Os conselhos de medicina (CFM e CRMs) avaliam a conduta sob o ângulo da ética médica e podem aplicar sanções disciplinares, mas não substituem o juiz de direito na esfera penal. Ainda assim, a observância do código de ética médica, especialmente do capítulo V, é uma poderosa ferramenta preventiva.
- Documentar, informar e atuar com base em princípios técnicos e éticos protege tanto a saúde do paciente quanto a trajetória do médico na profissão.
Na prática, isso significa:
- cuidar do prontuário e de toda a documentação;
- agir com prudência em situações de risco, principalmente em pronto socorro e em contextos de parada cardiorrespiratória;
- não abandonar o paciente, evitando condutas que possam ser vistas como omissão de socorro;
- buscar atualização constante, ouvindo o que a doutrina e a jurisprudência (incluindo professores e tribunais) têm decidido sobre responsabilidade penal médica.
Se você, como médico, está envolvido em processos ou teme ser responsabilizado criminalmente por um suposto erro médico, procurar apoio especializado em direito médico e direito penal é um passo essencial.
Uma defesa técnica bem estruturada pode fazer toda a diferença entre ver a sua atuação reconhecida como correta – ainda que o desfecho clínico tenha sido triste – ou enfrentar as pesadas consequências de uma responsabilidade criminal injusta.
Se você é médico e está enfrentando uma acusação de erro médico, recebeu uma notificação de processo penal, ou simplesmente deseja reforçar sua segurança jurídica no exercício da profissão, saiba que não precisa lidar com isso sozinho.
A equipe da Garrastazu Advogados é referência nacional em direito médico, responsabilidade penal e defesa técnica de profissionais da saúde. Conte conosco para analisar seu caso, orientar cada passo da sua estratégia de defesa e proteger sua carreira, sua reputação e sua tranquilidade.
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